Um dos aspectos centrais na produção de Tulio Costa é sustentar uma relação quase que intrínseca entre vida e obra. Sua performatividade abarca uma dicotomia na qual a ação vira parte da rotina do artista trapeiro. Catar, buscar, pegar, não deixar escapar aquilo que está diante de si é a premissa de uma vida-obra. Nesse contrato vital que o artista faz consigo mesmo, o ato em si é o trabalho, ao passo que cada busca se conceitua como uma anedota do todo.
Voltemos ao começo. Aqui, falo sobre a obsessão de Tulissimo, em todos os superlativos que esse adjetivo implica, por uma vida que seja vivida. De aspirante a estilista de sucesso a catadora de clipes (2019), ou o oposto do que isso poderia significar, quando pensamos a trajetória do artista a partir da sua relação (ainda presente) com a moda, entendemos a escolha pelo local de passagem desse seu trabalho, registrado pelas lentes do artista Gabriel Pessoto.
Ao adentrar as ruas do bairro do Bom Retiro, na região central da cidade de São Paulo, Tulio se encontra com um passado não muito distante. Quando aquelas travessas eram parte de uma rotina do estilista-artista, sabia-se do potencial do espaço projetado para uma de suas obras. Trajando vestido dourado, batom vermelho, brinco de cristais e um sobretudo preto, pouco “usual” para uma prática de catar objetos na rua, nota-se as ramificações intrínsecas que almejam o encontro entre passado e futuro, endossando uma outra prática do artista, que encontra no vestuário um lugar conforto.
Se a vida é a obra para Tulio, a escolha por desbravar um dos bairros que faz parte de sua própria história é implicitamente relacional do ponto de vista de sua rotina, que não mais é aquela dos anos anteriores em que esse próprio bairro se abria para além de um conceito espacial de tempo. A vida, ali, para o então estilista, era um tanto banal. Explico. A banalidade, aqui, é um ponto de confronto encontrado pelo próprio artista enquanto realidade. Viver uma vida banal não é (não pode ser) uma escolha para ele. A banalidade é brutal e pode ser vazia. O vazio, para Tulio, não é uma opção. Portanto, não cabe mais a ele, e a sua antiga rotina, dá-se o luxo de ser banal. Essas relações triviais são postas pelos próprios objetos encontrados, “que são insuportavelmente banais”, como se o artista se sentisse permitido à banalidade, corrompendo esse conceito ao salvar esses objetos, identificando-se neles.
Diante disso, o artista encontra nesse passado recente de alteridades o que viria a ser uma de suas obras mais completas. Ao percorrer as ruas do Bom Retiro catando clipes, colocando-se diante de si, de sua própria vida e daquele espaço, Tulio faz as pazes consigo mesmo e com sua antiga rotina. Faz as pazes com sua vida-obra. O ato de se agachar, constantemente, visto no vídeo registro, é um ato de escolha. Ao optar por fazer esse gesto, o artista se percebe enquanto parte daquilo, enquanto artista. Agacha, pega um clipe, levanta, anda, agacha, pega um clipe, levanta, anda... Essa nova dinâmica rítmica pelas ruas do bairro compreende uma outra rotina, na qual a atenção se prende ao chão. No chão, está sua obra. Do chão, levanta-se um trabalho que é gesto, é corpo e é vida. O chão é o fundamento do trapeiro, diz o próprio artista.
Pelas ruas desse bairro que se apresenta deserto, Tulio defronta novamente o chão. Por esses caminhos, surge a oportunidade com o acaso. Decerto, os passos são certeiros e o olhar afiado, mas não se sabe o que está posto, apenas a certeza de alguns encontros, visto que o trapeiro deixa passar itens pelo caminho, fazendo com que essa busca precise ser diária, constante, infinita, como uma vida inteira, título que carrega outros de seus trabalhos oriundos dessa série. Para esse trapeiro-colecionador, a busca incessante por esses tesouros é um desbravador de possibilidades.
Ao término desse caminho desgarrado, é realizada uma cerimônia de respeito ao que foi encontrado. Tulio, então, organiza seus clipes e os outros objetos em um ato de catalogação, separando-os por tamanho, deformações, cores, tipos. É o momento de total encontro do trapeiro com sua nova coleção. Desse acervo, surgem esculturas, instalações, vídeo, xerogravura, fotografia como desdobramentos. Nesse instante de pós vida, quando a vida é o instante da busca, percebe-se certa sinestesia por um dever cumprido. No contrato que faz consigo mesmo, Tulio Costa não teme em viver, seja por sua obra ou pelos caminhos oriundos dela, mas com uma promessa muito clara de aspirar ser o artista que é.

Deri Andrade, abril de 2023.
Pesquisador, curador e jornalista

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