Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta só para te ver dançar.
E isso
diz muito sobre minha caixa torácica.
Matilde Campilho

Contrapesos, rabiolas, sacolas plásticas e papéis de bala.
Se essa rua fosse minha, a tristeza estrutural dos dias, um autorretrato acidente… a tal da esperança de uma vida inteira ou a palavra Tétano como título de uma primeira coleção de joias.
São essas as texturas do urbano vasculhado por Tulio, onde retalhos de tecidos e restos de aviamentos informam ao público um artista em flerte com a moda – de estilista de sucesso à aspirante à catadora de clipes. Ou, sem falsas modéstias: de artista de sucesso à pesquisadora interessada no banal como potência de criação. 
Seu sucesso aparece na contramão da máquina que mantém a mais valia da classe operária, encontrando os rastros de indivíduos que operam as engrenagens deste sistema. Em suas andanças ao Bom Retiro, por exemplo, Tulio Costa integra-se à paisagem do bairro populoso em confecções têxteis e lojas de roupas na região central da Cidade de São Paulo, revelando-se como mais um desses trabalhadores.
Ao reagrupar os objetos encontrados, o artista cria séries e conjuntos que demandam tempo até que estejam finalizados – parece ser do interesse de Tulio trabalhar por meio de um processo contínuo de criações que não se encerram numa única forma ou finalidade. Como em suas plastificações, em que Tulio passa a operar uma segunda vida; uma terceira, uma quarta...  Dali surgem os esquemas e as aproximações por cores, texturas, similaridades formais e outras características que compõem as coleções intermináveis de uma vida inteira.
Do encontro à plastificação, do plástico à reorganização, da nova forma à importância enquanto objeto artístico, o interesse da pesquisa que Tulio tem a ver com a reapresentação dos rastros que deixamos sobre a pele dos dias. Rastros que contam histórias de uma cidade em colapso, necessitando ser redesenhada diariamente. Rastros que revelam o hábito do descarte ao qual encontram-se imersas as colônias contemporâneas. 
Ao reimaginar a cidade, Tulio busca aspectos formais do desenho no vestígio de quem a habita junto de si: o ponto, a linha e o plano estão lá! A dimensão plástica dos trabalhos conta com a persuasão trazida por cores, formas e discursos impregnados em cada objeto e retrabalhados pelas mãos de quem os coleta enquanto ferramentas de um outro esboço. Em seu redesenho urbanístico, tramando uma urbe voltada para aspectos sensíveis da vida em comunidade, Tulio quase sempre expõe as fragilidades coletivas dos grandes centros – como quem assume a autoria, ainda que coletiva, de cidades construídas sobre lógicas desiguais.
Por isso, a figura mítica e maldita do trapeiro é substituída pela Bixa trapeira: uma outra modelagem revisitada do homem das multidões.  Aqui é onde Tulio brilha feito seus objetos encontrados no meio da noite, trajado de vestido e batom sobre bicicleta. Ao tomar para si tal conceito – não mais um personagem –, Tulio transita e habita os interstícios entre centro e margem. Ele, a Bixa trapeira, percorre as cidades, jamais como um mero observador ou um errante. Não há tempo para se perder. A Bixa trapeira de Tulio, que em sua pesquisa preocupa-se também em encontrar seus pares, transita como agente modificador da paisagem e do juízo de um território urbano encaixotado em modelagens que não amparam corpos e subjetividades em estado de dissidência.
A Bixa trapeira coleciona objetos que se tornam preciosos quando encontrados. Ela coleciona aqueles amores que a convidam a atravessar a cidade, também os prints extraviados e expostos, servindo como provas de remetentes e destinatários anônimos. Em sua coleção de trapos são elaborados outros referenciais reflexivos para novos corpos textuais. A Bixa trapeira retira da cidade e da norma aquilo que lhes pareça excessivo para assim reencantar e tornar valiosa a sua experiência de arte e vida.

Rafael Amorim, entre fevereiro de 2022 e fevereiro de 2023.

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