Falar sobre o trabalho de Tulio Costa traz o mesmo prazer de contar uma história anedótica, de espalhar uma fofoca que ouvimos desprevenides, de fazer um desabafo sobre um sentimento em formulação ou ainda de confessar uma obsessão, sobretudo quando o assunto é Gabriel. Pouco se sabe sobre o sujeito cor de rosa, mas não faltam pistas: um cachorrinho de pelúcia pink, isqueiros em variados formatos e tons de rosa, canudinhos de plástico translúcido rosado, uma pistola de cola-quente rosé, um dildo magenta macio – e este é só o começo de uma lista que não caberia aqui e esgotaria rapidamente as variações tonais atribuídas a esta cor.
Gabriel é um vício, Gabriel é uma ficção, Gabriel é um interlocutor, Gabriel se inscreve na pele e, no entanto, o que nos cabe nessa história é testemunhar o ajuntamento de um vasto recorte de objetos cor de rosa. Eventualmente dispostos em superfícies lisas, repousados sobre papel, plastificados ou, ainda, multiplicados em sua vibração e beleza ao serem posicionados entre espelhos. A possibilidade de estarmos diante de uma história de amor excita a imaginação. Declaração ou desilusão? Um romance platônico ou ato consumado? Realidade ou ficção? A diversidade de itens, contudo, borra as expectativas e desejos, complexifica essa trama, apaga e reescreve capítulos. Enquanto buscamos as peças deste quebra-cabeça, tentando articular uma relação entre esses itens tão diversos, contemplamos os objetos. São lindos. Olhamos para eles em busca de alguma resposta, de algum entendimento sobre o motivo daquela presença, o porquê de estarmos costurando relações entre tantas bugigangas rosadas ou, ainda, no ímpeto de agenciarmos racionalmente essa coleção dentro de uma discussão sobre arte. 
É evidente que a maior parte dos objetos encontrados, guardados com zelo e exibidos pelo artista são fruto de uma produção industrial – miudezas de plástico, materiais sintéticos, cacarecos produzidos em larga escala por máquinas e vendidos por toda parte. Mesmo quando fragmentados, é possível apreender minimamente a materialidade dessas relíquias e associá-las ao grande acúmulo de bugigangas descartáveis que se apinharam nas últimas décadas. Essa característica industrial, que poderia ser um comentário sobre os excessos do capitalismo – da produção ao consumo, toma outro contorno: o discurso amoroso. As frivolidades e os dejetos de um mundo drenado e industrializado não são capazes de ofuscar os sentimentos, afinal. As experiências se fixam aos objetos sem fazer juízo de valor e até mesmo uma escova de dentes pode ser a testemunha de um acontecimento indelével.
Outro elemento essencial na construção dessa coleção é o trânsito-gesto-processo a partir do qual os artigos são anexados. Não é vasculhando prateleiras de lojas, tampouco navegando por sites de venda online que a compilação é feita. Tulio se depara com esses itens, ele os flagra em seus deslocamentos pela cidade, caminhando ou montado na bicicleta, por uma cidade onde muitos vestígios das vidas alheias são descartados a céu aberto, nas esquinas, nas sarjetas. Essa economia dos restos materiais das experiências humanas – onde narrativas aderem inevitavelmente aos objetos, funciona como um ateliê, um espaço de coleta e curadoria. Portanto, não basta ser cor de rosa para pertencer à coleção. As marcas do uso, o desgaste, o descarte e a memória alheia embutida aos itens são parte da receita. As paixões movem o mundo, mas quem move os objetos? Os apaixonados? Não sabemos, não temos nenhuma pista do passado dessa matéria-prima que Tulio transforma em trabalho. É nesta lacuna que o procedimento poético do artista opera, transfigurando um objeto mundano e abandonado em um portador de potenciais narrativas, mais ou menos sugeridas pelo destino que objeto tem em sua montagem, catalogação e nomeação.
Pensando também em possíveis diálogos com produções contemporâneas no campo da arte me parece que não basta aproximar a pesquisa de Tulio do uso do ready-made[1], conceito que foi sendo costurado ao longo do século XX, tampouco é suficiente entender o trabalho por uma abordagem de pós-produção[2], como nos apontou Nicolas Bourriaud ao pontuar a recorrência de processos de reformulação e edição de vestígios do mundo-vida-história-cultura na produção de artistas. Um exercício imaginativo me faz pensar que a classificação para a série Gabriel teria mais a ver com uma noção de ready-made-ready-tainted[3], ou seja, objetos maculados que carregam traços de uso e potência narrativa. Ciente da maleabilidade e diversidade desse material recolhido, os recursos formais empregados para a apresentação final dos trabalhos transitam entre ímpetos experimentais e formalistas. Eventualmente, um volume de componentes da coleção é exposto a um mesmo procedimento – à plastificação, à organização enfileirada, à aproximação por afinidades da utilidade original do item. Nesses casos, valoriza-se a individualidade dos objetos e podemos perceber sua inteireza ou suas precariedades e marcas de uso. Outrora, o cor de rosa se impõe pelo volume, quando a coleção é apresentada em grandes conjuntos, disposta com cuidado pelo artista em instalações site-specific.
Gabriel é um conceito em construção. Uma narrativa a qual novos elementos são acrescidos indefinidamente, extrapolando inclusive a noção de indivíduo. A profusão de objetos cor de rosa diz respeito a experiências anônimas-coletivas mais do que escrevem uma história coerente. Sendo assim, o adensamento dessa narrativa errática, que depende da sorte – por um lado de quem descarta e, por outro, dos caminhos traçados por quem recolhe e acolhe esses objetos, opera enquanto um exercício de catalogação. Procedimento caro a artistas que observam uma produção massiva de itens de consumo, imagens e produtos culturais, a catalogação feita a partir de um dispositivo cromático nos expõe a uma série de inferências sobre questões de gosto, estilo, classe, gênero e nos informa sobre os espaços ocupados por uma cor dentro de uma trama social e cultural.         
Apesar da cor, um dado fundamental na pesquisa de Tulio, se impor enquanto experiência sensorial, o design dos itens coletados por ele nos permite pensar sobre os clichês de um imaginário visual romântico. O cor de rosa, tão associado ao feminino e ao ingênuo, na configuração cultural que se apresenta para nós, dá o tom para essa coleção de artigos desenhados para o uso "feminino", para um uso infantil “feminino", para atrelar práticas e hábitos a um determinado gênero (sabemos bem qual deles) e, além do mais, valendo-se de uma iconografia decorativa romântica: corações, lacinhos, flores e pelúcias macias. Ao passo que rapidamente percebemos essa vocação "romântico-feminina" da coleção, ela nos desestabiliza. A infância dos sonhos e o "feliz para sempre" da vida à dois divide espaço com o erótico, com os vícios, com a higiene, com as tarefas de casa e outros pormenores menos idealizados de uma vida. É nessa profusão de ambiguidades que a potência narrativa da série Gabriel se afirma. Podemos especular, teorizar, buscar uma pista que indique um discurso coerente ou um personagem firme, mas a resposta é inatingível. Nem mesmo Tulio seria capaz de justificar todos esses fragmentos, todas essas bifurcações, o que não paralisa a obsessão por aproximar esse montante de tesouros. A história não para de ser contada, o rosa não deixa de aparecer furtivamente aos nossos olhos, portanto, passado e futuro alimentam simultaneamente essa escritura.                
Guardo memória de um poema de Kaváfis[4], já muito transformado pelas inconsistências características das lembranças, que descreve a atitude de um mercante que resistia em vender seus artefatos mais belos – ele os guardava em uma caixinha forrada de cetim nos fundos da loja. De alguma forma, o carinho e o fascínio deste personagem literário se reflete no gesto do artista que compila trapos. Ao contrário do mercante, no entanto, a ternura por esses objetos não leva Tulio a reservá-los longe dos olhos e das mãos dos outros para uma apreciação própria e egoísta. Do contrário, ele escancara, ele implora para que olhemos com atenção para essa coleção para nos convencer da sua beleza, mas também daquilo que podemos aprender sobre o estado de coisas ao ver essa inusitada reunião.                                
Falar sobre o trabalho do Tulio é um deleite e, simultaneamente, uma tarefa infindável, talvez impossível. Falar dói, neste caso, pois é inevitável fechar algumas portas de leitura e especulação enquanto direciono o caminho por outras. Estar cego de amores pelo trabalho de um amigo é um presente ingrato, que nos condena à insatisfação sobre nosso alcance e capacidade de mediação sobre o objeto amado.
Gabriel é um monumento, um altar, um tributo aos amantes – dos românticos aos apaixonados pelas belezas levianas, dos pessimistas, dos que deixaram casos mal resolvidos pelo caminho e não conseguem mais conviver com os vestígios de outrem. Contempla as intensidades do viver, mas também as possibilidades lúdicas do mundo material. A coleção em questão é um repositório de todos esses desejos românticos, desejos por histórias com finais felizes, desejo pelo deleite voyeurístico que sentimos com as resoluções trágicas. A mesma coleção, que tanto nos convoca a pensar sobre os causos da vida, nos apresenta uma fagulha de ruptura sobre a relação que estabelecemos com as coisas. Independente da cor e da forma, Gabriel nos evidencia o achatamento das nossas ações e gestos ao apontar para um comportamento fora da norma – recolher os restos, elevá-los, namorá-los, escutá-los. As peças estão dadas, mas as regras do jogo podem ser diferentes!                   
Tulio nos deixa inebriades por um conhecimento que não se acomoda em palavras – o conhecimento da experiência, da fantasia, da rua, do corpo, do gozo, do apego-despego, da educação sentimental, da obsessão, do amor, das possibilidades arejadas de relação com as coisas todas. Comovido, encerro.

Gabriel Pessoto, outubro de 2022

[1] DANTO, Arthur. O Abuso da Beleza. São Paulo: Martins Fontes, 2018.
[2] BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção: como a arte reprograma o mundo contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
[3] Termo criado livremente a partir da adição da palavra tainted, que pode ser traduzida da língua inglesa para o português como o adjetivo "maculado".
[4] KAVAFIS, Konstandinos. Os Poemas. Lisboa: Relógio D'Água, 2005.

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