Faz 8 graus em São Paulo enquanto escrevo, em um dos mais ou menos 40 dias do ano que fazem frio dessa forma na cidade. Eu amo o frio, até quando não gosto dele; estranhamente as casas brasileiras não estão preparadas pra esse tempo. A que estou morando agora em especial parece uma geladeira. Ainda assim, de alguma forma posso dizer que o frio me dá prazer.
Entre "Só gosta do frio quem tem abrigo", como diz o trabalho de Marcel Diogo (Recado da rua, 2017), e a "dor faz com que me sinta vivo" (que tem mil variações, como "no pain no gain") existe um enorme abismo sobre o qual não poderíamos sequer construir uma ponte. De alguma forma, gostar de frio pra mim é estar no fundo desse abismo, um lugar que chamo de "tristeza estrutural".
Tem uma abundância de motivos de diversas naturezas que configuram esse lugar fugidio sobre o qual não sei fazer um juízo de valor ainda. Talvez não haja uma verdadeira solução para definir as bordas disso, pois é como tentar se fixar em um vulto, mas de propósito: faço dessa investigação cega um tipo de trilha às 6 da manhã numa paisagem ainda inebriada pela neblina, mistério. Talvez eu esteja perdido, talvez eu esteja profundamente traumatizado pelo nosso sistema de produção. Talvez estejamos todos.
Foi no mestrado, enquanto semeava com cuidado a semente do não saber, que me encontrei com Tulíssimo e a conversa entre nós passou das amenidades. Exige uma vontade de afeto para que certas relações existam, e a ressonância dos assuntos de nossos trabalhos que eram totalmente opostos, depois de algum tempo convergiu em assuntos que, no fundo, são o mesmo sendo investigados em lugares diferentes.
Tulio é uma pessoa sóbria que se pergunta sobre a felicidade (onde está e como chegar até ela) e eu sou uma pessoa divertida que se pergunta se é isso mesmo a felicidade enquanto de forma literal se mata de trabalhar. Veja; é uma proximidade por estarmos ambos no fundo do poço.
Acho que é dessas conversas que saiu o primeiro trabalho que ele chamou de Tristeza Estrutural, um círculo perfeito de pedras cuidadosamente costuradas em uma base, que antes de configurarem o trabalho parece que viveram por meses soltas nessa mesma formação em um lugar do chão da casa dele.
Antes de falar dos outros trabalhos da série, falaria deste: o círculo perfeito temporário montado num lugar do íntimo onde não se pode pisar. Um jardim em volta do qual construímos muros; um parapeito que evita cair pra dentro de onde não poderíamos voltar.
É um delicado balé, configurar uma cidadania inclusiva e competir com o próximo por emprego e recursos; Ética bixa. Afeto público, afeto íntimo. Justiça com os pares. Nessa instância, antes de reverberar peço que naveguem o LinkedIn e o Lattes; seu, meu, nossos, dos professores e dos CEOs.
Outros trabalhos da série que carregam o nome Tristeza Estrutural são compostos de metais encontrados e clipes galvanizados novos. Chegamos a falar sobre escrever um artigo a quatro mãos sobre eles, mas nunca tivemos tempo, e eu também não sou um bom acadêmico. As coisas que iriam pra lá estão aqui também, se uma revista Rosa da vida realizasse o meu sonho de publicar um texto tão amador.
Existe nesses trabalhos materiais pra mil vidas: o metal encontrado se choca com a perfeição maquiada do clipe novo, que se equilibra pra configurar naquela base algo possível. Esse não-saber da tristeza estrutural se faz presente nesse choque de temporalidades: um saiu da loja e foi parar ali, outro circulou a cidade e foi, de mão em mão, sendo usado e descartado de forma orgânica até que chegou ali também.
Pergunto-me se, assim como os meus trabalhos em paisagem, esses não são alegóricos da nossa situação. Lembro que Tulio sofreu um pouco por usar algo que não fosse encontrado. Em respeito a isso, na minha forma afetuosa, porém distante, comprei os clipes e pedi que entregassem no ateliê dele. Nunca vi nem toquei nas caixas ou clipes pessoalmente, assim como é frequente na minha produção: muito é digital, e o que é impresso vai direto para a exposição e vejo só depois.
De alguma forma, esses materiais navegaram o mundo até Tulio. Aquilo que foi produzido e passou pelas mãos e o abandono, junto do que foi produzido e estava em potencial máximo passando por toda a cadeia logística onde Tulio também atuou como entregador; arte-vida. Sobre ser novo, em 30 anos a gente vê.
Andreas Koens, maio de 2022.